quarta-feira, 14 de novembro de 2012

Teste de realidade


Ele odiava dormir sozinho, mas não era como se tivesse escolha, ligava a televisão no “fala que eu te escuto” para processar a discussão mais filosófica que ele seria capaz de digerir sem entrar em depressão, também era uma ótima maneira de lhe tirar o foco dos próprios pensamentos. Antes de deitar sempre passava pelo banheiro para se olhar no espelho e fazer o teste de realidade, se estivesse sonhando pularia pela janela do quinto andar, mas, não estando, apenas se jogou na cama. –Maldito medo da morte- disse para o quarto vazio, que não o respondia mas parecia compreende-lo melhor do que qualquer um.

Uma sirene aguda do lado de fora do seu prédio de repente atravessou como um míssil todas as paredes do seu pequeno castelo, do seu transe voluntário.  Tentou continuar deitado entretido na polêmica da gravidez na adolescência, mas a sirene persistia em brincar com a cara da sua rotina. –Mas que diabos- Pensou, já não estava confortável o bastante para dialogar com o próprio quarto, guardou seus pensamentos para si mesmo enquanto subia as persianas da sua janela.

Saía uma ambulância da casa no outro lado da rua, e  ele sabia bem o porquê, o pai do dono da casa tinha a saúde frágil, era o tipo de pessoa que tratava a  passagem da vida para a morte como uma criança em uma porta giratória, brincando de ficar no caminho ao invés de atravessar ou voltar de vez. O som da sirene ia ficando distante conforme as paredes do seu castelo iam se colocando no lugar. - Foda-se- Verbalizou para o quarto vazio, enfim em paz, enfim sós.

Quatro da manhã e ainda não conseguia dormir, o fala que eu te escuto tinha terminado e a televisão agora exibia apenas o horário e tocava alguma melodia desconhecida. Sempre dormia antes do último bloco para entrar no mundo dos sonhos no meio de um raciocínio, nunca se deixando chegar em nenhuma conclusão, mas não conseguia dessa vez. Estava preocupado com o velho? Não saberia dizer, embora parecesse improvável, não fazia ideia nem se a própria mãe ainda continuava viva,  de repente ela parou de ligar, só isso. Não é como se ela tivesse obrigação de falar com ele.

-Alô, pai?- já tinha pego o telefone e discado antes mesmo de pensar sobre o assunto, e agora seria estranho demais simplesmente desligar na cara do próprio pai- Tô no inferno então vou abraçar o capeta- Pensou.
-Ricardo, é você?- Tinha sido a primeira vez que ouvia o seu próprio nome dito por outra pessoa em doze dias, a última foi o carteiro.
-Oi oi
-Aconteceu alguma coisa filho?
-na verdade não, só queria saber como vocês estavam mesmo
-...mas são quatro da manhã, você está bêbado? – Não o culparia de pensar assim, no seu último porre ano passado  ligou para o pai pedindo para ele abrir a porta porque ele tinha esquecido a chave,  sendo que além dele não morar mais com os pais, sequer era no mesmo estado.
 -Não, é que eu não conseguia dormir mesmo
-do jeito que você é viciado em café eu não duvido- seu pai tinha um ponto, desde criança tomava uns sete cafezinhos por dia.
-É, deve ser isso- Respondeu enquanto os músculos do seu rosto ensaiavam um sorriso incontido, não parecia algo natural, embora fosse espontâneo.
-Tá tudo bem, sua mãe dormiu no quarto assistindo novela e eu acabei caindo no sono aqui na sala assistindo o Discovery, vou até lá para dentro assim que eu desligar o telefone- Então a sua mãe ainda continuava viva,  os músculos do seu rosto forçavam um sorriso daqueles que mostram os dentes, provavelmente isso significava que ele ainda se importava, vai ver ele não era tão frio quanto se julgava ser, pra variar.

Conversou com o seu pai durante muito tempo sobre os assuntos mais variados possíveis, seu pai não respondia muito, estava sendo um ouvinte melhor do que o seu quarto, porque vez ou outra dava alguma prova que estava escutando. Pegou o celular e começou a andar pelo quarto, estava tão entretido que ignorou quando a música da televisão parou, ignorou quando seus pés pareciam suspensos do chão, ignorou o próprio reflexo embaçado.

Fez o teste de realidade por tempo demais para não perceber que estava sonhando, mas preferiu se fazer de idiota, esse tinha sido o sonho mais feliz dos últimos tempos, mesmo adormecido conseguia ver os lados bons da vida. No dia seguinte não ligaria para dar um oi de verdade, passaria o resto dos dias recuperando o tempo perdido nos projetos que abandonou, até o dia que pudesse ligar para a sua mãe com algo que lhe dê orgulho, com algo que dê orgulho pro seu pai lá em cima, que já está morto.
 #Laércio Diniz

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